quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Salve à coexistência!

Padre Cícero ao lado de Iemanjá: coexistência pacífica.
(Foto: JMN)
O debate sobre religião sempre se "renova" de tempos em tempos. Nesta segunda-feira, 22, começou a nova novela de Glória Perez, Salve Jorge, no horário nobre da Globo. E, claro, o termo originário dos cultos afrobrasileiros incomodou muita gente. São Jorge, que segundo a lenda cristã matou um dragão e vive na Lua, é sincretizado como Ogum, o orixá guerreiro.

Circularam pelo Facebook as típicas imagens combinadas com texto alertando aos cristãos do perigo que a expressão "Salve Jorge" poderá acarretar à integridade espiritual de cada fiel. Até aí, tudo bem, se você ler a mensagem apenas pelo viés do "querer bem aos semelhantes".

A mim incomodou bastante. Primeiro, porque em toda a mídia nenhum babalorixá ou ialorixá sai esbravejando que os cultos cristãos são "demoníacos", nem andam chutando santas ou fazendo piadas de práticas inusitadas como por um copo d'água em cima da televisão enquanto o pastor ora do outro lado. Nenhum representante das religiões de matriz africana tem aparato suficiente para responder na mesma proporção ao dano causado à imagem desses cultos. É um combate desigual e injusto. Segundo, porque a mensagem subliminar apregoa que tudo que vem da fé africana é um mal a ser combatido, resultando em segregação aos praticantes, em geral negros e pobres habitantes das periferias.

Esse tipo de proselitismo só aprofunda ainda mais as desigualdades sociais, disseminando uma ideologia nefasta, que leva, inclusive, ao desrespeito ao Estado laico e atenta contra a liberdade de culto prescritos na Constituição brasileira de 1988 (não confundir com 1889, um ano após a Abolição).

A intolerância religiosa persiste, enquanto o mito da cordialidade brasileira se torna mais espúrio. Como também afirmar que onde os cristãos são minoria eles são perseguidos não legitima seus atos por essas bandas e vice-versa. Mas no Brasil, país republicano, de maioria cristã, a religião ainda é usada como meio reprodutor da casa grande e senzala. É nisto que persisto.

O cristianismo padece de críticas por estar numa posição hoje de opressor das religiões afrobrasileiras, no contexto em que vivo. Isto não quer dizer que todos os cristãos são assim, contudo aqueles que divulgam mensagens denegrindo a fé trazida nos navios negreiros têm, sim, culpa no cartório, em especial os estelionatários que ocupam horas diárias nas grades das TVs abertas.

Quero ressaltar que não defendo aqui a "propaganda que a Globo faz" do candomblé ou umbanda através da novela Salve Jorge, nem do kardercismo como fizera outrora. Está aí em cima, no meu perfil: agnóstico, que na minha definição idiossincrática significa "tô nem aí pra religião". Mas eu me indigno muito quando a religião ou qualquer outra coisa é usada para diferenciar negativamente as pessoas num estado democrático. Favor não confundir isto como um lamento de quem "posa de vítima", isto aqui é um ato de resistência.

Também não quero usar este espaço como veículo de "proselitismo cético", pois isto é uma contradição em termos, como diria Renato Russo. Agnósticos e ateus não precisam pregar sua descrença, uma vez que não formam uma religião, não necessitam de dízimo, oferta, nem cobram por um trabalho que não o profissional. 

Mas sou sensível à beleza do misticismo, sobretudo quando se realiza como expressão popular (talvez assunto para outra postagem), tal qual na imagem acima.

Infelizmente, a sociedade brasileira ainda não entendeu que há espaço para todos, que existem alternativas ao projeto monocultural do neoliberalismo. Que o protestante, o católico, o sincretista, o budista, o índio fazem todos parte de um fenômeno universal metafísico, fruto da relação limitada entre homem e natureza que a ciência a passos miúdos vem desvendando. O mistério ainda é maior.

Salve à resistência! Salve à diversidade! Salve à coexistência!

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Frágil como panela de barro



No domingo, Zema Silva Ferreira, Zulu Fernando e eu visitamos o Povoado Muquém e soubemos de coisas muito tristes para a comunidade. Dividiram-na visando benefícios egoístas, como também, de forma descarada, estão usando o legado do Muquém para vender uma imagem particular como se fosse coletiva. Em miúdos, alguns "artistas" copiam a arte de Dona Irineia e Seu Antonio, enquanto outros usam a comunidade como curral eleitoral. Resultado: o enfraquecimento de um povo que antes teve de lutar por liberdade e agora se distancia mais do mínimo de dignidade possível. Saímos de lá muito tristes.

Arte de Dona Irineia. (Foto: ?)
Na segunda, soubemos da morte de Mestre Caboclinho, ícone palmarino do guerreiro e dos festejos natalinos, que, pelo pouco que sei, não teve seguidores fiéis para levar sua brincadeira adiante. Espero estar errado, para que não aconteça o que ocorreu em Branquinha quando o Mestre Ziza se foi sem poder transmitir seu legado, haja vista que nenhum jovem se interessara pelo guerreiro nem mesmo sua filha.

Hoje, que notícia golpeará nossa cultura?

Até quando nossos artistas, homens e mulheres que carregam nossa identidade, serão vilipendiados pela falta de reconhecimento, tanto da parte do poder público que tem a obrigação de resguardá-los, como também pela maioria da sociedade aculturada? Até quando o povo que herdou o Quilombo dos Palmares terá essa visão turva de que tudo se resume ao mês de novembro? Até quando a baixo autoestima reinará entre aqueles que amam sua cultura, mas "por falta de apoio" se resignam? Até quando a iniciativa privada se negará a devolver o mínimo do que ganham da população que a enriquece?

Estamos atrasados. Pessoas "de fora" vêm a União dos Palmares ensinar dança afro às nossas meninas. Religiosos do candomblé e umbanda ainda transitam quase que na clandestinidade, senão são taxados de "macumbeiros" ou de satanistas. Não há, depois de tanto tempo, um centro cultural que sirva tanto de lugar de ensino quanto de palco decente para a exposição da arte. Artistas locais precisaram peitar organização e músicos "de fora" para garantir seu espaço no palco da praça Basiliano Sarmento mais de uma vez, como ocorreu com a banda Estuário Mundaubeat e Thiago Correia - Quilombola de Sião, ambos com trabalhos autorais totalmente voltados para o doce e o amargo de nossa terra.

Estuário Mundaubeat no Festival Linha de Produção (22/09/12). Foto: Vanessa Mota.

Thiago Correia - Quilombola de Sião. Foto extraída de seu perfil no Facebook.
Estamos atrasados, porque ao invés de fazermos um movimento de continuidade, o que há é um resgate ou mesmo a implantação daquilo que se alinha à nossa história. Não precisamos que ninguém responda por nós à interpelação: "Quem é você?". Porém, permitimos que isso acontecesse. A ajuda que vem "de fora" é boa e sempre será bem-vinda e de extrema relevância. O que é inaceitável é o povo palmarino continuar negando sua história

Nossos mestres e mestras estão terminando suas atividades sem deixar aprendizes e sem público local que os incentive, sem poder transmitir suas paixões. Estão morrendo duplamente, encaminhando-se para o ostracismo do qual é impossível se resgatar.

Fica aqui registrada nossa pequena homenagem ao Mestre Caboclinho, que não conheci nem tive a oportunidade de ver uma de suas apresentações, mas que, assim como Mestre Ziza, com certeza brincou muito e, por tabela, espalhou sua alegria popular por onde passou.

Chega de tragédias, preconceito e desdém. Ainda há tempo para reflorestar o canavial. Como diz o Wado, fortalece aí a nossa cultura, frágil como panela de barro.